Haroldo Lívio de Oliveira
Soberbo
Os
riachos sempre deságuam nos rios, que correm para o mar. Assim quer o destino
das águas, que se assemelha ao destino dos homens. Um insignificante curso d'água
brota da nascente, cava seu leito no chão e segue. Percorre seu caminho peregrino
e cumpre a sorte de afluente, com resignação, ao despejar a corrente no primeiro
rio que encontrar em sua viagem a caminho do mar.
Parece que é essa a estrela dos humildes cursos d'água. O rio Itacambiraçu, típico rio
de montanha, que corre entre pedras e despenhadeiros, tem caudal forte e traiçoeira, e
recebe uma porção de pequenos afluentes, de sua cabeceira até a foz, no lendário
Jequitinhonha. Um deles, o Ribeirão do Inferno, aurífero, diamantífero, que desce das
alturas do céu, banha a cidade de Grão-Mogol e deposita suas águas ferruginosas no
leito alvejante do Itacambiraçu, após uma corrida desabalada, de corredeira, como se
fosse o próprio oceano que o aguardasse no final da jornada.
Outro afluente, o Córrego das Mortes, despenca a prumo da serra, cantando nas cachoeiras,
e busca o baixio do Vau, onde se entrega, submisso, às águas turbulentas do rio maior,
que o tragam, do mesmo modo que a baleia engole um cardume de peixes miúdos.
Há, porém, na bacia um riacho que não aceita a sina de ser mais um afluente apressado
do Itacambiraçu, negando-se a oferecer-lhe o tributo da sua linfa, que guarda para o mar,
como o fazem o Jequitinhonha, o Pardo, o São Francisco. Ele nasce a poucos passos
do Itacambiraçu - um murmúrio brotando da areia, sob a ramagem - e, ao invés de
buscá-lo, para desaguar em seu leito caudaloso, prefere cainhar ao seu lado, mantendo
distância respeitosa.
Os moradores daquelas bandas dizem que o riacho é orgulhoso e sonha em despejar sua
corrente nas profundezas do mar. Isso é verdade, embora pareça lenda, pois, quem,
observar o vale do alto da serra poder ver, claramente, o Itacambiraçu caminhando lado a
lado com o pequeno riacho, que mantém sempre a mesma distância
de seu poderoso vizinho e parece até ignorar sua presença majestosa. Sucedem-se
corredeiras e saltos, o vale descreve caracóis entre as serras, e nada faz ao riacho
acostar-se ao rio. Os dois caminham indiferentes, para o rumo do oceano, carregando suas
canastras de ouro e diamante.
A água doce caminha ao encontro da água salgada, seu destino. O riacho pensa que é rio,
e lá vão os dois andarilhos, cada qual na sua estrada, cada qual com sua sina, a caminho
da comunhão sagrada do mar. Vistos de longe, ora parecem um homem e um menino, o pai e o
filho; ora parecem um cavaleiro solitário e seu cão fiel. Próximos, mas separados.
... E o riacho orgulhoso chega ao fim de sua peregrinação sem prestar vassalagem ao seu
poderoso vizinho. Não despeja no mar, despeja no Jequitinhonha, tal qual seu companheiros
de viagem. Deságua satisfeito, honrado e pecador. Por isso, o povo que anda pelas serras
- o garimpeiros, caçadores, pescadores, carvoeiros - concedeu-lhe a patente de rio e o
trata, respeitosamente, de Rio Soberbo.
Wanderlino Arruda